Em Portugal o alcoolismo é uma realidade que afecta muitas famílias. Ainda assim, praticamente só ouvimos falar do impacto da doença a propósito das tristes notícias de violência doméstica. Infelizmente o problema é mais abrangente, mais complexo, mais feio. São muitas as vítimas do alcoolismo - estima-se que cerca de 10 por cento dos portugueses sejam consumidores abusivos de álcool, o que implica que haja diariamente milhares de crianças e jovens que convivem com as consequências devastadoras de uma doença que se mantém tantas vezes silenciosa, guardada entre as paredes de casa. Todos os dias há crianças e adolescentes que vão para a escola depois de mais uma noite marcada pelo medo, pela violência e pela negligência. E todos os dias há crianças e jovens que se esforçam por manter a normalidade numa vida que pouco tem de saudável, que se esforçam por não dar nas vistas, para não levantar (ainda mais) problemas.
São filhos de pais e mães alcoólicos e adaptam-se como podem aos cenários frequentes de bebedeiras, quedas, violência verbal e decadência, desenvolvendo mecanismos de defesa que passam, em muitos casos, por calar a própria dor e seguir com a vida para a frente. São crianças que, desde muito pequenas, conhecem a disfuncionalidade familiar e que, em função disso, não podem sentir-se seguras e amparadas. Pelo contrário, o medo toma conta das suas vidas e é frequente ouvi-las relatar, anos mais tarde, que rezavam todas as noites para que o pai ou a mãe não bebesse. Desenvolvem muitas vezes transtornos depressivos e ansiosos que são exemplarmente camuflados por padrões comportamentais que roçam a perfeição. Aprenderam muito cedo a contar apenas consigo mesmas e cedem vezes demais à tentação de assumir responsabilidades que não são suas. "Foram obrigadas a crescer depressa demais", dizem alguns. Mas talvez não tenham crescido na realidade. Porque crescer implica uma visão clara da realidade, implica que sejamos capazes de identificar as nossas emoções e de as exteriorizar com segurança e assertividade. E estas crianças chegam muitas vezes à idade adulta sem que tenham aprendido a reconhecer e a exteriorizar a sua tristeza e a sua raiva. Contiveram-nas durante tanto tempo que chegam ao ponto de não conseguir fazê-lo de forma saudável - oscilam entre a passividade e a explosividade. Pior do que isso:carregam culpas que não são suas, alimentadas por visões muito distorcidas da realidade por que passaram. São meninos e meninas que chegam à idade adulta convencidos de que quando o pai deu "aquela" queda à chegada a casa, foi por sua culpa, porque tinham desviado a cadeira do lugar, e não por culpa da bebedeira. E que lá no fundo acreditam que o progenitor bebia porque elas, as crianças, causavam um grande transtorno. E que poderiam ter feito mais e melhor para ajudar. Nem sempre percebem que foram vítimas de um problema que deixa marcas tão profundas e tão impactantes. E quando chegam à idade adulta, depois de ultrapassarem um sem número de obstáculos e de, aparentemente, terem vencido na vida, sentem-se inexplicavelmente intranquilas, tristes, inseguras. E mesmo que, na altura em que pedem ajuda psicológica, falem sobre a infância cortada pelo alcoolismo, levam tempo a interiorizar que as dificuldades que agora relatam estão relacionadas com os episódios traumáticos por que passaram, levam tempo a aceitar que não têm de carregar quaisquer culpas. E é preciso ainda mais tempo e confiança para que se sintam capazes de expor as suas feridas e deixar que estas sejam tratadas.