Ele – Eu queria ter filhos “para ontem”.
Ela – Eu queria tê-los daqui a dez anos.
Embora possa parecer retirado de uma sitcom, o diálogo anterior é fruto de um caso real. As dificuldades deste casal prendiam-se, pelo menos aparentemente, com divergências quanto à escolha do momento certo para o nascimento do primeiro filho. Neste caso, a palavra “divergências” não é mais do que um eufemismo. Cada um dos membros do casal adoptou uma posição demasiado rígida, ainda que convenientemente fundamentada.
Como não é a validade dos argumentos de cada um que está em causa, não me parece pertinente expô-los aqui. Esta bipolarização é tão desconcertante que merece uma análise sistémica. Afinal, como é que é possível que um casal chegue a este ponto? Não terão conversado sobre o tema antes? O que estaria, verdadeiramente por trás desta inflexibilidade? Em resumo, o que é que estaria a contribuir para que, a este nível, este casal fosse tão diferente dos outros?
Os sonhos e o planeamento destas questões podem ser anteriores à formação do casal – muitas mulheres ambicionam ser mães antes dos 30 anos, outras planeiam a vida profissional no sentido de poderem exercer esse sonho mais perto dos 35… mesmo sem terem um companheiro. Contudo, a vida é cheia de surpresas e os planos, muitas vezes, saem furados (para o bem e para o mal).
Algures durante o período do namoro surgem as primeiras conversas sobre o tema – os primeiros sonhos a dois: “Quantos filhos gostarias de ter?”, “Que nome daríamos ao nosso primeiro filho?”. A consolidação da relação traz consigo abordagens mais sérias – os membros do casal começam a expor claramente as suas perspectivas, os seus desejos, as suas dúvidas e os seus constrangimentos. Então, os sonhos individuais tomam a forma de um projecto a dois. Quando isto acontece, a idealização individual dá lugar à co-construção de uma realidade familiar.
Assim, é natural que surjam algumas divergências, independentemente do amor que os una. O planeamento do nascimento do primeiro filho pode ser condicionado por múltiplos factores – evolução das duas carreiras profissionais, desemprego de um dos membros do casal, estabilidade financeira, finalização de projectos académicos, maturidade psicológica e biológica, enraizamento de estereótipos (“Deve existir um hiato curto/longo entre gerações”), conclusão de outros projectos pessoais…
Mas isso não impede que as duas perspectivas sejam harmonizáveis. Quanto maior for o conhecimento mútuo, melhor será a comunicação conjugal. Este processo implica algumas cedências. Assim, é provável que nem todos os projectos individuais fiquem concluídos de acordo com os planos individuais. Os casais felizes reconhecem que a perfeição é inatingível, pelo que constroem a sua família com alguns custos pessoais (dos dois lados).
Pelo contrário, as pessoas que não estão dispostas a sacrificar nenhum milímetro do seu projecto individual, dificilmente conseguirão construir uma família – à excepção dos casos em que um dos membros do casal se anula face ao outro.
Esta cristalização é especialmente frequente em dois tipos de situações: o mais comum é aquele em que o período de namoro foi tão curto que os membros do casal nem tiveram “tempo” para conversar profundamente sobre estas questões; outras pessoas são “vítimas” da idealização excessiva – constroem contos de fadas e encaram o cônjuge como a “peça” que faltava.
Qualquer projecto requer tempo, consolidação e cedências. Um projecto de vida não pode requerer menos!