Ele: O que é que estás a fazer?
Ela (com a voz “arrastada”): A acabar de tomar os comprimidos. Vou matar-me.
Ele: Anda lá, veste-te. Vamos ao hospital fazer uma lavagem ao estômago.
O diálogo, arrepiante para alguns, paradoxal para outros, traduz bem uma parte da história deste casal. Ela sofre de depressão há vários anos e as tentativas de suicídio são frequentes. Daí a aparente frivolidade da reacção do marido. Nem um nem outro serão capazes de contabilizar o número de vezes que recorreram às urgências de um hospital nestas circunstâncias.
Um olhar menos atento poderia levar-nos a juízos de valor muito perigosos – “Ela só quer chamar a atenção”, “Jamais se matará”, “Ele é um desgraçado”. Mas a realidade é (sempre) muito mais complexa. Aqui, como em tantas outras famílias, todos são vítimas. Ela, ele e a filha deles, hoje jovem adulta, cujo crescimento foi irremediavelmente marcado por cenas como esta.
O para-suicídio, isto é, a prática de actos que simulam a vontade de morrer – através da ingestão de uma dose elevada de comprimidos ou da auto-flagelação, por exemplo – é erradamente confundido com amuos ou birras. Ainda que difira da tentativa de suicídio, na medida em que, neste caso, a pessoa procura deixar pistas daquilo que está prestes a fazer, não pode ser desvalorizado. É que o socorro nem sempre chega a tempo.
A propósito da situação relatada acima, poder-se-ia dizer que, se ela quisesse “mesmo” matar-se, teria tomado os comprimidos e ter-se-ia calado. Mas esse é um princípio com pouca lógica. Todas as ameaças devem ser levadas a sério.
As razões subjacentes a estes episódios são múltiplas, mas envolvem SEMPRE grande sofrimento, desespero e desorientação para o próprio. “Ela” não quer chamar apenas chamar a atenção dele. “Ela” não aguenta mais! São tantas as vezes em que se sente tomada por esse desespero… Foram tantas as vezes em que se despediu da filha, que adora – às vezes deixando-lhe um bilhete, outras através de uma SMS em que dizia “Quero que sejas feliz…”. Foram muitas as vezes em que poderia, de facto, ter morrido. Só por sorte está viva.
Os familiares e amigos – neste caso como noutros – também são parte do problema e nem sempre sabem como gerir a situação. Não raras vezes há problemas familiares graves que dificultam a implementação de uma ajuda eficaz. Não é só a pessoa que tenta ou simula o suicídio que precisa de ajuda. Quem está à volta também desespera, às vezes “na sombra”. Os mais próximos, em particular os filhos, podem sofrer de stresse pós-traumático, em função destas experiências.
O isolamento é um dos piores inimigos destas famílias. Cansados de lutar, envergonhados pela sucessão de cenas, os familiares do para-suicida também podem sentir-se impotentes e desmotivados. Quem pode julgá-los?
É fundamental que estejamos – todos – alerta. Qualquer ajuda pode marcar a diferença. Às vezes basta que saiamos da nossa concha e prestemos mais atenção ao que nos rodeia. Quantas vezes nos apercebemos de comportamentos estranhos numa pessoa conhecida? E quantas vezes perguntámos se precisava de falar? Numa situação limite a demonstração de interesse pelo outro, o reconhecimento dos seus sentimentos e a empatia podem ser determinantes. Esta ajuda pode constituir a ponte para o tratamento especializado.